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quarta-feira, 25 de julho de 2012

O verdadeiro Mestre


“Mestre não é aquele que conquista pela força, mas pela simplicidade abissal do seu ser.”
Beija Flor

A capoeira se configura hoje como uma das melhores artes/lutas do mundo; esta genuinamente afro-brasileira. Com o passar dos anos, a capoeira vem se espalhando pelo mundo, sendo cada vez mais popular em diversos países: México, Argentina, Estados Unidos, França, Bélgica e outros. Hoje, essa arte é a maior divulgadora da nossa cultura popular brasileira e da língua portuguesa no mundo, independente das diferentes correntes de práticas e estilos.
O grande rei negro Mestre Bimba estava certo quando falou: “Criei a capoeira para o mundo.” Aquela, que era capoeira “regioná” hoje é “mundiá”. De fato, a capoeira hoje está nos quatro cantos do mundo. É neste contexto que ela foi difundida nessas últimas décadas muito rapidamente, e temos de considerar e respeitar os seus precursores, que pelo toque do berimbau atravessaram mares e, na sua determinação, abriram novos caminhos para negacear nossa arte/luta pelo planeta. Entretanto, é preciso observar que muitos mestres, professores e líderes de capoeira partiram de várias formas e lugares do Brasil para ensinar essa manifestação cultural brasileira. Não se trata aqui de uma abordagem ou discussão simplesmente banal ou subjetiva, mas de uma observação mais intrínseca e uma investigação mais apurada sobre os seus valores culturais, sociais, fundamentais e tradicionais da capoeira, levando em consideração e respeitando o seu processo histórico.
Pode-se perguntar que tipo de capoeira é ensinada, passada ou repassada hoje dentro e fora do Brasil. É necessário reconhecer que muitos não estão pensando de fato na nossa belíssima arte, luta, esporte e cultura, mas somente em seus grupos, instituições, mestres ou umbigo. “Os lobos talvez mudem a pele, mas jamais a alma.” disse o filósofo Erasmo de Rotterdam. Neste processo de individuação egocêntrico e narcisista, muitos estão remando contra a capoeira, pensando somente no seu bolso. Refiro-me ao momento de hoje, nesta contemporaneidade selvagem, onde tudo é muito rápido, sem valor, sem tempo, sem essência, sem filosofia de vida, tradições, fundamentos. Tudo é muito sem sentido, descartável, sem sustentabilidade. Tudo é um mero bel prazer dos interesses particulares de alguns líderes, comandado somente pelo seu ego. “Tudo se cria, mas nada se copia dos verdadeiros e velhos mestres.”

O sociólogo polonês Z. Bauman afirma que estamos vivendo uma modernidade “líquida”, uma sociedade “líquida”, amores “líquidos”, tempos “líquidos”. Para ele tudo muda muito rápido; nada é feito para durar, ser sólido. É um mundo de incerteza; cada um por si.
Nossos ancestrais e os velhos mestres eram mais esperançosos quando falavam de progresso. Referiam-se à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Em busca de “evoluir”, do novo, do modismo, será que muitos não percebem que a capoeira está também mudando muito rápido? Em um atual estágio “líquido” impedindo de se solidificar, onde está o verdadeiro compromisso com a capoeira, seriedade e postura? Ou é mesmo falta de conhecimentos de alguns? Será que estão conscientes de que muitas coisas estão perdendo ou perderam nos últimos anos da capoeira? E eles continuam batendo cabeça, brigando entre si e presos em uma corda sobre o abismo. Praticamente não há sinal ou vontade para mudar e salvar a capoeira e não deixá-la seguir nesta obsessão coletiva de alguns mestres.

A crise está longe de terminar, e ainda viveremos suas consequências a longo prazo. A capoeira hoje está no centro das atenções. Mas ela só chegou, e ai? O que fazer agora? Para onde ir? De que forma preservar, fomentar toda sua história de resistência e luta secular, onde muitos mandam, inventam e destroem, constroem e reconstroem (graduações orientais, bengolas, super mestres, grupos alienantes, títulos medievais, estilos esdrúxulos, rituais religiosos, etc.), tudo como forma de verdade absoluta para gerações atuais e futuras? Eles estão pautados pelo “agora” que promete satisfações imediatas e resultados rápidos, ridicularizando todas as tradições, ancestralidade e fundamentos. Eles não percebem que tudo não passa de um mero fantoche dos outros e deles mesmos, seduzidos por uma ilusão, uma modernidade e um mundo desencantado.

Nesta capoeira “líquida”, será que realmente a capoeira é mesmo uma filosofia de vida? E os mestres estão realmente conectados com o real valor da autotransformação e realização que a capoeira pode fazer na vida de uma pessoa? Os capoeiristas modernos se defrontam com esses problemas, uma realidade muitas vezes compostas de aparências, um mundo de mentiras, fantasias, sombras, criações vazias, um estado de ilusão em que as coisas estão em incessante vir-a-ser, sem nunca serem duradouramente reais, verdadeiras, ímpares e de credibilidade. Muitos líderes destroem sonhos dos seus alunos.
Algumas instituições nunca chegam a lugar nenhum porque muitas vezes estão atrofiadas e desacreditadas, desvalorizando grupos, o outro, humilhando quem está perto e ironizando quem está longe.
Muitos são egoístas, tomados literalmente pelo ego. Mas o que seria o ego? “Um falso senso de identidade que temos dentro de nós.” Alguns capoeiristas agem baseados na raiva, inveja, culpa, medo, ódio, mágoa ou qualquer outro sentimento negativo ou pensamento velho e condicionado dos quais não conseguem se libertar. “Às vezes os fracos precisam diminuir os outros para se sentirem fortes.” Muitos podem até ter “boa intenção”, mas suas ações são egoístas. Nós, seres humanos, guardamos vários tipos de sentimentos desconfortáveis que ficam acumulados no nosso inconsciente. Os animais na natureza não produzem essa negatividade e por isso estão muito mais livres e em paz e mais conectados com a vida do que os humanos.
A capoeira que hoje está sendo jogada, cantada, lutada e divulgada muitas vezes não é uma capoeira de essência, de valores, onde o companheiro respeita o outro, valoriza o outro, joga com o outro, mas sim contra o outro. De onde vem esse impulso, às vezes, muito violento e desnecessário? Nas rodas, hoje os corpos gritam pelo Fighter inconsciente, um vale tudo na expressão facial, uma rejeição coletiva dentro e fora das rodas, com ações dissimuladas e rasteiras mesquinhas por parte de alguns deles.•.
Eles cantam os mortos, não cantam os vivos. Não elogiam, incentivam, aplaudem, valorizam o outro irmão pelo seu sucesso, talento, trabalho e vitórias, pois seu ego não deixa. Eles vivem mesmo no “CAPOEGO”! É ele mesmo que manda na sombra da navalha, pois todos querem ser o primeiro, a celebridade, o único, o campeão, ”o que fez e o que faz”. Outros vivem de passado ou sofrem da “síndrome de Gabriela”: ”Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim.” Portanto, é urgente que compreendamos: eles nunca chegaram ao estado de SER, nem no estado de TER, mas, sim, no estado de APARECER. Em suma, puro CAPOEGO, maquiados e vestidos para uma representação e espetacularização composta do nada, um abismo sem fundo.
Diante dessas questões, muitos estão escravos de si mesmo, não conseguem enxergar ou sair da caverna escura da sua própria ignorância. No fim das contas o problema não está necessariamente nas armadilhas do ego, nem em descobrir a saída do mundo de ilusão (Jung). O problema está nos prisioneiros.
O capoeirista moderno defronta-se com vários problemas que ele mesmo criou e recriou. Em outras palavras, vivendo em uma massa adormecida, passiva, que é moldada pela sua única vontade, só querem preencher onde eles sentem seus vazios. Homens encouraçados, vivendo a sombra do outro, a ilusão do outro, a neurose do outro, um estado continuo de carência “escravo da vontade, da ansiedade”. Desesperado para chegar a algum lugar que nem ele mesmo sabe de fato onde é. Um esvaziamento coletivo! Um egoísmo que faz do capoeirista inimigo do próprio capoeirista!

E a capoeira? Onde está a busca pelos princípios e fundamentos? Eles chegaram, mas a arte se perdeu. O capoeirista precisa pensar, investigar e observar a vida, a originalidade das coisas, sua própria caminhada, a capoeira no todo; rever os seus sentimentos e ações em relação a suas posturas como líder para não se tornar uma mordaça para o seu desenvolvimento pessoal e coletivo. É camarada, é hora de conhecer-te! Chamar este “CAPOEGO” cara a cara para uma luta na roda das ideias, definições, decisões e reflexões. Disse Lowen: “Uma pessoa que se identifica com seu ego, nega a importância do seu próprio corpo.”

Observamos que estes conflitos emocionais e inconscientes estão muitas vezes estruturados no corpo, na forma de tensões musculares crônicas, e são levados no dia-a-dia para o mundo da capoeira, seja no jogar, cantar, olhar ou na sua própria linguagem corpórea de um modo geral. Adorno disse: que a arte liberta o homem das amarras do sistema alienante e da indústria cultural, para não ser coração de máquinas.
“Penso que em águas profundas, torne-se mergulhador.”

Pois é, meus camaradinhas, o problema hoje é não ter problema, é olhar para trás e vê os mesmos problemas. Disse Sartre “[...] que o covarde se faz covarde, que o herói se faz o herói [...]”. Mas não é herói por um único ato; é, sim, herói a cada ato e a cada instante.
É necessário reconhecer que é hora, é hora! Vamos embora, camaradinha, que chegou a hora!
Temos muitos berimbaus para tocar, músicas bonitas para cantar! É hora de lutar e compartilhar, temos muitas rodas para jogar, muitos amigos para encontrar, e a hora não pode passar! Berimbau me chama, é hora de vadiar! A ladainha já começou, é hora de se emocionar! Temos muitos quilômetros para andar, uma nova historia para contar! É hora, é hora, camaradinha, de brincar com o corpo! Vamos balançar! É hora, é hora de começar ou recomeçar, pois a hora é essa! Vamos vadiar viver, sentir e pensar a verdadeira filosofia que a capoeira pode nos transformar! Quem não anda não ver o mar.

Vamos pedir a Vênia para a capoeira passar.

“Mestre é aquele que sabe que a arte de ensinar a mesma arte de aprender” (Beija Flor)

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